1. |
Manequim
02:40
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O pescador matou a sede
E arremessou a rede
Para capturar
Uma espécie protegida
Que não foi devolvida
Ao ventre do mar
Tirou a fotografia
Com a pescaria
Em pose de sultão
Ali mesmo fez o lume
E grelhou o cardume
Para a tripulação
Fui manequim
Na festa do sultão
Fui manequim
À proa no carvão
Já chegado a bom porto
Assassinou um porco
Que morreu a guinchar
Maçã na boca para o estilo
Na foto com o filho
Que chora ao mastigar
Fui manequim
Na grelha do sultão
Fui manequim
Num espeto em rotação
Fui manequim
Mataram-me à traição
Fui manequim
A tua boca é o meu caixão
Fui manequim
Na boca do sultão
Fui manequim
Só carne para canhão
Fui manequim
Num mundo em extinção
Fui manequim
O meu corpo é o teu caixão
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2. |
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Ia assobiando o hino com afinco patriota
Da janela o vizinho chamava-lhe idiota
Tinha a confiança de quem não se cansa
De vitórias morais
De quem não trabalha mas sempre ralha
Com as crises mundiais
Para mim, rei só o bolo
Dizia em tom de gozo
Que até o mais honesto é guloso
Um homem escolhe um lado,
Escolhe o outro e volta ao meio
A liberdade anda à vontade
Mas sempre com receio
Dos que agitam bandeirinhas
Em tempo de eleições
Que são os mesmos que protestam
Quando estão em maus lençóis
O governo isto e aquilo
Diz o jovem e o idoso
Até o mais honesto é guloso
Até o mais honesto é guloso
Desempregado e mal-amado
Pelo próprio país
Vai-se sentando
Sempre esperando um dia ser feliz
Critica no café
Mas cala-se em frente ao patrão
E o hino, só o canta
Quando joga a seleção
E vote em quem votar
O resultado é desastroso
Até o mais honesto é guloso
Até o mais honesto é guloso
Chega à reforma já em coma físico e mental
Telefona à família pelos dias de Natal
Vai ouvindo a crise pelo que dizem
Nas notícias na rádio
E ao domingo
Gasta o dinheiro da reforma no estádio
Já senil e marreco
Vai ralhando em tom nervoso
Que um político é mais contagioso
Que dar um beijo na boca a um leproso
E até o mais honesto é guloso
E até o mais honesto é guloso
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3. |
Fado Do Caixão
05:18
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Sentava-me em frente ao caixão
De um velho cão sem sepultura
Tinha uma pedra sem inscrição
Fotografia sem moldura
Sentava-me em frente ao caixão
De um gato que ainda vivia
E quanto mais o enterravam
Mais o seu miado se ouvia
Sentava-me em frente ao caixão
De um boi sem cornos e capado
Alguém com uma farpa na mão
Jazia morto a seu lado
Sentava-me em frente ao caixão
De uma cadela ainda prenha
E enquanto ela dava à luz
Usaram o caixão como lenha
O fogo ardeu por todo o ano
E eu fui ladrando até ser cão
Mal dei por mim estava às escuras
Deitado dentro do caixão
Mal dei por mim estava às escuras
Deitado dentro do caixão
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4. |
Berço de Ouro
03:06
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BERÇO DE OURO
Piso no cravo do bom português
Sou um escravo com um tique burguês
Em vez de pobre, fechado no nada
Quero ser rico, viver na fachada
Estou calado, deixo o vinho falar
Afundando qual âncora no mar
Antes ter casa que saber onde moras
Contar pertences, não o passar das horas
Eu não nasci em berço de ouro
Não tenho terra, cavalo nem touro
E preciso de soro
Deixei um bom emprego na Irlanda
Escrevi canções, formei uma banda
Mas as cantigas não pagam salário
Ouve o que digo mas faz o contrário
Vivo no limite, já ganhei calo
Faço biscates pela porta do cavalo
Não tenho herança, não tenho subsídio
Mais valia abrir um clube de vídeo
Eu não nasci em berço de ouro
Não tenho terra, cavalo nem touro
E preciso de soro
A distância deixa sempre mazela
Vou de barco a servir de vela
Roçando nos sonhos que tinha
De ponta-de-lança passei a bandeirinha
Sou mealheiro num mundo de bancos
A coxear ao lado dos mancos
Vou ser cremado, virar pó nas estantes
Qual estrangeiro num mundo de emigrantes
Eu não nasci em berço de ouro
Não tenho terra, cavalo nem touro
E preciso de soro
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5. |
Sonhos Sem Objectivos
04:00
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Anda fugir
Anda fugir do tempo morto
que é dormir
Que é dormir dentro do lodo
Arrependido
Daquilo que não se cumpriu
E ao fugir
Ficou por inventar o fogo
Além de tudo por fazer
Anda fugir
Anda fugir do tempo morto
Ampulheta
Mão no caixão
E o corpo a devolver
Sonhos sem objectivos
Antes chover
Um vendaval de amarguras
Do que chorar
A procurar o que descuras
Tudo é falível menos aquilo que falhou
Ampulheta
Mão no caixão
E o corpo a devolver
Sonhos sem objectivos
Sangrei o caminho das estrelas
O sangue brilha à luz das velas
Na chama
A bússola a girar
Aponta
Fora do radar
E o tempo morto a renascer
Ampulheta
Mão no caixão
E o corpo a devolver
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6. |
Fodidos
02:50
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É pró menino e prá menina
Sob torres de vigia
Logo na ecografia
Estão fodidos
É pró menino e prá menina
Caderno e pistola
Na mochila da escola
Estão fodidos
Anda limpar a testa do visor
São gotas de suor
Com toalhas por vender
Deixa lá
Quem está vivo nem sempre aparece
Já nem aborrece
Quando um bom amigo recusa ser alguém
Ai, não fiques refém
De empurrar aqueles que ficam parados
À espera sossegados
No seu canto isolados
Netflix, tele-gado
A esticar peles virtuais
A cultivar ameixas
Para gueixas de internet
E a tirar cotão do umbigo
Estão fodidos
É pró menino e prá menina
O chicote que avalia
A meritocracia
Estão fodidos
É pró menino e prá menina
Rendas para milionários
Em gaiolas de canários
Estão fodidos
Anda trocar o santo pelo signo
O dogma é inquilino
Da mente que arrendou
Deixa lá
Quem está vivo nem sempre aparece
Já nem aborrece
Quando um bom amigo recusa ser alguém
Ai, não fiques refém
De empurrar aqueles que ficam parados
Crânio cativo
A pensar dispositivo
Comprimidos pelo sonho
Incumprido pelos pais
Estimado cliente
Ansiedade fluorescente
Brilha fora da caixa
Com ideias triviais
Pose de cueca
Ai, chove tanta seca
Deserto de mirones
Com olheiras virtuais
O mar plastificado
Espeta a mangueira do estado
Numa torneira de Legos
Para regar os quintais
A morder os dentes
Das palavras indecentes
Que entopem os ouvidos...
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7. |
Olho do Tubarão
04:36
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Arrebatei o que jurei
Não comprar em leilão
A fina dopamina
Fez-me festas no coração
Ao consumir sem resistir
Aquilo que me encantou
O algoritmo
Deu-me o seu abraço de robô
Acumulei o que comprei
Engavetado no pó
E quanto mais tenho
Mais me sinto só
São coisas que não quero mais
Coisas para perder
Lixo infiltrado no prazer
Coisas que entram pelo mar
Coisas sem coração
Lágrimas no olho do tubarão
A solidão sem direção
Obrigou-me a ceder
A opinar sem questionar
O que estava a dizer
O algoritmo aprovou
E deu-me a sua mão
De polegar estendido
Em aprovação
São coisas que não quero mais
Coisas para dizer
Lixo infiltrado no lazer
Coisas que entram pelo mar
Coisas sem emoção
Que choram pelo olho do tubarão
São coisas que não quero mais
Coisas para perder
Lixo infiltrado no prazer
Coisas que entram pelo mar
Coisas sem coração
Lágrimas no olho do tubarão
Que choram pelo olho do tubarão
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8. |
Teias de Aranha
10:27
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Pensando no tempo que passa
Vislumbro um sinal de mudança
Sorrio para o gume da faca
Como o porco sorri na matança
É mais um sorriso forçado
Que vejo no espelho do amor
E os olhos que ontem brilhavam
Parecem buracos sem cor
Não tenho medo do que se passa
Tenho os miolos roídos da traça
Já ouço o homem que ergue a gadanha
Dizer
A tua cabeça é só teias de aranha
E enquanto a memória não passa
Vou neste comboio sem freio
Saúdo a gente que passa
Esticando o dedo do meio
E a cabeça gira na cama
Na curva espiral do prazer
Para uns a vida é fodida
Para outros a vida é foder
Não tenho medo do que acontece
É mais um pouco de mim que apodrece
Já sei que o anjo da guarda existe
E diz
Caga lá nisso, o mundo que se lixe
Não temos tempo
Senão para olhar para trás
E é esse o tempo que nos move
Enquanto o mundo nos dissolve
Só choras agora que dás pela perda
Pois tens a cabeça cheia de merda
São estes os olhos do amor
Pintados a lápis de cor
E a voz da eterna promessa
Vai dizendo que isto é doença
O anjo virou sem-abrigo
Já não quer nada comigo
E diz que deus criou o mundo sem falhas
Mas tudo o que acontece é ao calhas
Enquanto remexo no saco do lixo
Diz-me num sorriso
Não penses mais nisso
Não penses que o pensamento emaranha
Mais vale ter o cérebro em teias de aranha
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Daniel Catarino Porto, Portugal
Daniel Catarino é um cantautor alentejano residente no Porto. Em canções que fundem a música de raiz e o rock, aborda os paradoxos da humanidade entre a frieza analítica e o calor poético.
Ao vivo, apresenta-se em trio.
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