1. |
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não é nada, vais ver
isto vai passar
mas cada vez que ligo a televisão
piorou a situação
vou-me remeter
ao meu antro vazio
de mãos lavadas
e o corpo castrado no cio
não tenho mais medo de morrer do que ontem
qualquer dia pode ser o fim
não tenho mais medo de morrer do que ontem
a morte anda aí
mas sempre foi assim
tanta gente doente
mal começou
a somar até que a tabuada
multiplicou
tento manter-me calmo
sem ataques de pânico
obrigado a usar o bidé
como papel higiénico
12 março 2020
Porto
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2. |
Um cruzeiro sem embarque
04:08
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sou um morto-vivo
sozinho e cativo
lamentavelmente
falta-me aguardente
espreito da janela
tanta gente em celas
tanto tempo morto
num prédio do Porto
é casa ou é prisão?
talvez não
tens razão
é prisão
tens razão
talvez sim
talvez não
que venha a salvação
mas estou melhor sozinho no quarto
a coçar o sovaco
que fechado num barco
a vida linda parte
num cruzeiro sem embarque
estar de quarentena
não é ter gangrena
álcool e lixívia
nada de lascívia
vou-me lavar
apanhei ar
lá fora
lá fora, ai
a correr, a saltar
sem correr nem saltar
tudo a desinfectar
amanhã
repete e volta a dar
mas estou melhor sozinho em casa
que numa cama rasa
a tossir pulmões
16 Março 2020
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3. |
Candidatura
04:14
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candidatura
alguém preenche a candidatura
preenche o formulário, o otário
o saloio que vai pedir apoio
tem uma coisa no olho
que está fora do regulamento
não merece garantir o sustento
há pobres e pobres
eu sei que a vida é dura
apresenta uma candidatura
um inquérito
que desbota nas mãos de quem pede
ajuda a quem lha promete
a distribuir
a quem lhe servir
o pão nosso de cada dia
bem regado em burocracia
enrolado numa côdea dura
vem preencher, vem preencher
a tua candidatura
burocracia
comprovativo
de que estou mais morto que vivo
um anexo para a falta de sexo
e um óbito por precaução
apresenta o documento
que valida a tua pobreza
que a tua conta do banco está tesa
e um pobre com fome
não perde a compostura
apresenta uma candidatura
burocracia
candidatura
se não preenches a candidatura
não vais ao concurso, seu urso
que dá acesso à declaração
um requerimento
com fotocópia do atestado
e um carimbo por cima assinado
e ainda a factura
com boa leitura
assim se faz uma candidatura
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4. |
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anda por aí polícia à paisana
que discorda das cores da farda humana
o vermelho que escorre do negro
assina o contrato de emprego
de gente que ao fim-de-semana
é polícia à paisana
anda por aí gente faminta
que aperta o espartilho por cima da cinta
escorre a casa pelo telhado
sobre um prato descampado
e a rua é a quinta
de gente faminta
anda por aí a caveira
de alguém que caiu da cadeira
ossos moles de uma queixada
que fala muito sem dizer nada
e alastra a sua cegueira
de caveira
anda por aí o passado
feito polícia do condado
corre pelas artérias
já vazias de ideias
a triste figura de estado
do passado
andam por aí os iluminados
chaves dos futuros cadeados
fogo de sofá procura bombeira
chove gasolina sobre a lareira
e ardem teclas nos teclados
dos iluminados
a polícia à paisana
quer gente faminta
presa à caveira
presa ao passado
dos iluminados
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5. |
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bom dia
sorriem os lençóis
será hoje que se acabam os heróis?
que abre o café
o bar e a discoteca
não sei dançar mas bebo uma caneca
um dia
responde-lhe a fronha
quando a ciência deixar de fazer ronha
destapa os pés
do corpo que enrolas
e tu colchão
solta quatro ou cinco molas
bom dia
como vais?
vou dormindo umas horas a mais
bom dia
como vais?
vou comendo umas coisas a mais
bom dia
acorda o edredão
então é hoje?
já temos solução?
não há novidade
responde-lhe o estrado
a cura para andar
não é ficar parado
bom dia
acena a cabeceira
estou a fritar
não dormi a noite inteira
o autoritarismo piora-me a doença
vou ficar só
como o alho na dispensa
bom dia
como vais?
vou dormindo umas horas a mais
bom dia
como vais?
vou comendo umas coisas a mais
bom dia
como vais?
vou fechando umas coisas a mais
bom dia
como vais?
vou fugindo dos hospitais
bom dia
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Daniel Catarino Porto, Portugal
Daniel Catarino é um cantautor alentejano residente no Porto. Em canções que fundem a música de raiz e o rock, aborda os paradoxos da humanidade entre a frieza analítica e o calor poético.
Ao vivo, apresenta-se em trio.
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