1. |
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BANDA SONORA PARA UM DIA ANORMAL
Derreto agora os meus pulmões de barro
e este é o som do meu último cigarro
se aguentas a tempestade
inventas outra vontade
despertas a liberdade
e aguentas a tempestade
se aguentas a tempestade
inventas outra vontade
despertas a liberdade
se aguentas a tempestade
inventas outra vontade
despertas a liberdade
inventas a tempestade
cão mordido é cão queimado
é cão que ladra num miado lento
entre a chuva e a clepsidra equilibrada na balança
é cão de caça e cão de guarda
é cão que passa e caravana que ladra
embebido na saliva de um mosquito roedor
na bainha das calças
e na fronha mordida do amor
na cama seca, num corpo ferido
genérico na sua raça
cão queimado é cão mordido
ó cama de casal
quanta da tua areia
é manteiga sem sal
barrada na sereia
de uma praia sem areal
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2. |
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O ÚLTIMO CIGARRO NO ALTO DE SÃO BENTO
dantes era crente
agora estou dormente
contente plo que tenho
descrente plo que vejo
não me aleijo às escuras
não tenho amarguras
os meus olhos são fissuras
nos teus azulejos
não quero o teu beijo
não quero a tua forma
não te quero de joelhos
a limpar o que entornas
não faças do que é
aquilo que pode ser
não me deixes a pé
não me faças correr
que eu não vou
não vou para casa
sem um grão na asa
sem o bico molhado
atestado no pecado
ligado ao passado
do presente que te dei
em vão desfolhei
pelas horas que passam
pelos cães que ladram
pelos dias que ficam
e os que não acabam
espera
passa-tempo
cata-vento
alto de são bento
ao relento é aquilo que tu vês
e agora amiúde
tenho falta de saúde
entre placas de amianto
e os pesos que levanto
tenho perna fraca
tenho mão de vaca
tenho a estaca do vampiro
suspiro pelo tiro
que te mata a fome
não és homem
não és nada
és um beijo de boca amargurada
que te come a namorada
que também não vale nada
e que dantes era crente
e agora está dormente
e descrente e doente e cansada
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3. |
Samba Manco
02:48
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SAMBA MANCO
Fogo
Grito fogo posto
Vou tapando o rosto
Tento respirar de dentro para fora de mim
A vida não tem fim
A vida não tem
Nexo
Tudo é complexo
Não nos basta o sexo
Temos de tirar os três ao pobre coração
A vida é confusão
A vida não tem
Pena
De quem se condena
Sempre a mesma cena
Vejo os poderosos que vão cuspindo em mim
A vida tem um fim
A vida não tem
Fado
Queixo-me do estado
Sinto-me usado
Vejo abalar-me tudo tostão a tostão
A vida é uma canção
Que repete o refrão
Água
Tanta que me alaga
Bato em quem me afaga
Tento mergulhar de dentro para fora do mar
A vida não tem par
A vida não tem
Meias
Calço más ideias
Grito coisas feias
Tento respirar do lado negro do pulmão
A vida é uma canção
Que repete o refrão
A vida é uma canção
Que repete o refrão
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4. |
O Anel de Outra Vida
02:24
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O ANEL DE OUTRA VIDA
Pintavas sonhos com sorrisos de paixão
Mas carregavas o anel de outra vida
E eu sempre fui o refúgio, a guarida
De outra vida a que chamavas prisão
Tinhas nos olhos a permanente incerteza
E a beleza melancólica do olhar
Choravas muda ao te sentares à mesa
Dessa família a que te foste entregar
Eu sempre fui o ombro do teu choro
Segunda escolha do teu paladar
Sempre soube que te irias entregar
Viraste lixo quando já foste tesouro
Mas respeito que te sintas obrigada
A cuidar dessa família que criaste
Quando pudeste fugir não arriscaste
Com medo de fazer a escolha errada
Agora presa à infelicidade
Passas dias sem a chama de viver
Não aguentas a agonia de sofrer
Condenada a piorar com a idade
Pintavas sonhos com sorrisos de paixão
Mas carregavas o anel de outra vida
E eu sempre fui o refúgio, a guari
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5. |
Nesses Dias
07:48
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NESSES DIAS
bates à porta
dizes que o sonho é teu
dizes que o sonho é teu
e vai ser nosso
entras no quarto
no escuro eu vejo mal
no escuro eu vejo mal
mas sinto o cheiro
dizes que é hora
é hora de acordar
é hora de acordar
e dar um passo
dás-me um abraço
e um sorriso a brilhar
e um sorriso a brilhar
que vai ser meu e teu
nesses dias que eu choro e rio
faz de conta que é só o cio
a marinar no teu pitéu
nesses dias que eu rio e choro
vou-me embora mas não demoro
é só uma nuvem que passa no céu
sentas-te à mesa
e o vento a murmurar
e o vento a murmurar
que não te leva
danças com alma
e as mãos a esvoaçar
e as mãos a esvoaçar
no corpo todo
uivas à lua
e eu começo a ladrar
e eu começo a ladrar
à tua porta
deitas-te nua
e eu começo a dançar
e eu começo a dançar
à tua volta
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6. |
Inácio e Joaquina
03:17
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INÁCIO E JOAQUINA
Inácio
coberto com pele de cordeiro
desliza entre as ovelhas descalças
calcando as ervas selvagens
e os minúsculos cadáveres de animais invisíveis
abre a caixa dos fusíveis
espreita entre as teias de aranha e o pó secular
aparentemente não há nada por reparar
Inácio inicia o caminho de volta
cabisbaixo e combalido
acaba por se atirar ao chão
a mão agarrada ao peito
o peito agarrado ao coração
a sua face em tons de cinza
emite expressões carrancudas
pautadas por algum desespero
Inácio mete a mão no bolso
só para se relembrar que está de pijama
foi assim que saltou da cama
alertado pela esposa que o quadro da luz tinha disparado
levantou-se ainda atordoado
cobriu-se com o casaco da mulher
e fez-se ao mato às escuras
com os chinelos enlameados a escorregar
a boca seca do cigarro e do digestivo
as mãos estaladas pelo frio e entaladas pela lenha
a ira dos céus regurgitava-lhe gotas de chuva na careca
e a água sabia-lhe a veneno
sua esposa, descansada na cama
nunca suspeitaria do sofrimento em que Inácio se havia afundado
a lama apoderara-se já de todo o seu corpo
e entre o formigueiro na barriga
o aperto no peito e a cabeça zonza
as larvas começavam agora a passear-lhe pela pele
enquanto Inácio forçava as mãos contra o coração
Joaquina acordou às 4 da manhã
e deu por falta do marido a seu lado
vestiu o robe e começou a chamar por ele
"Inácio? Inácio? Onde andas tu?"
Caminhou em direcção à caixa dos fusíveis
escorregou na lama e aterrou em cima do seu marido
o sangue da cabeça de Joaquina
escorria agora para a boca de Inácio
e foi assim que ele acordou
sufocando no sangue da sua esposa
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7. |
Madrugada Fora
02:38
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MADRUGADA FORA
começou de madrugada
tinha a janela fechada
veio o frio
o arrepio
de uma noite gelada
e acordei cheio de sede
do outro lado da parede
o meu vizinho bebe vinho
sozinho na cama de rede
grita com o filho e com a mulher
está-lhes quase a bater
o que é que vai acontecer
chega a polícia
que delícia
corre logo a notícia
as velhas saltam da cama
de pijama
é a milícia da malícia
reclamam
não consigo dormir
com esta barulheira
a gritar e a tossir
sem dormir a noite inteira
o pai de copo na mão
o garrafão no meio do chão
e a mulher sossegada
e o puto esconde a cara
o bófia não repara
na pancada levada marcada
ele não repara
anda cá anda cá
não te vais embora agora
com o vinho eu adivinho
onde levas, porque choras
anda cá anda cá
onde pensas tu que vais
se levares aos pares
as marcas parecem sinais
madrugada fora
nem sempre à mesma hora
o meu vizinho de cima
faz de conta que evapora
a mãe grita "anda cá
tenho mais que fazer
que andar à tua procura
mas que neura
a noite escura não me deixa ver
e eu tenho medo das loucuras
em que te vais meter
tu não tens cura"
do meu quarto
já estou farto
desta discussão
se o puto anda fugido
dou-lhe toda a razão
dona conceição
não vê que o rapaz
foi matar o tédio
você não deixa dormir
ninguém neste prédio
é o barulho na cozinha
a ladainha da vizinha
a campainha igual à minha
isto não tem remédio
quanto o puto regressa
a discussão começa
é sempre a mesma conversa
a repetir
anda cá anda cá
que o teu pai 'tá chateado
à tua espera no sofá
com o cinto arreado
anda cá, anda cá
toda a noite, todo o dia
o pai aos peidos no sofá
e a mãe nesta gritaria
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8. |
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DOMINGO DE CHUVA E NEVOEIRO
É contigo
É contigo que hei-de
É contigo que hei-de estar
Em qualquer lugar
É sozinho
É sozinho que hei-de
É sozinho que hei-de ver
Onde vou morrer
É domingo
É domingo e não
É domingo e não se vê
Mas então porquê
É contigo
É contigo que hei-de
É contigo que hei-de ser
Tudo o que quiser
O vento corre por aí
Corre atrás de ti
É o sonho
É o sonho de ver
Sonho de te ver mudar
Sem nada a perder
É o corpo
É o corpo que hoje
É o corpo que hoje cai
Sem ter mãe ou pai
É no osso
É no osso duro
Osso duro de roer
Que hei-de renascer
É contigo
É contigo que hei-de
É contigo que hei-de estar
Em qualquer lugar
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Daniel Catarino Porto, Portugal
Daniel Catarino é um cantautor alentejano residente no Porto. Em canções que fundem a música de raiz e o rock, aborda os paradoxos da humanidade entre a frieza analítica e o calor poético.
Ao vivo, apresenta-se em trio.
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