1. |
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Segue o rasto de areia
Daqui até à ilha
Onde os cães podem uivar
Com o líder da matilha
Despidos até às entranhas
Cavamos túneis na montanhas
E o chão é o rasto de um vulcão
Pisa a uva do presente
O pé do futuro
Brindemos à nossa carne
Com vinho maduro
Passamos despercebidos
Na caverna dos distraídos
A pintar figuras rupestres
De viajantes destemidos
A retina da rotina
Muda a cor dos dias
E o teu rosto ilumina
As grutas mais sombrias
Somos biólogos do afecto
Pestanas de um só olho aberto
A tocar baladas de ouvido
Aos viajantes destemidos
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2. |
Restos de Migalhas
02:59
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vou comendo os restos de migalhas
que sobraram do pão de quem comeu
faço poses revolucionárias
quis lutar mas o punho não se ergueu
atiraram-me areia para os olhos
distraído, só lhe vi a cor
fui castrado e cortaram-me a cabeça
e eu à pressa, escolhi o mal menor
saí de um sentido proibido
dei num beco sem saída
subi, mas já sabia que ali
o caminho é só descida
fiz-me de burro
mas não cheguei à palha
comi restos de migalhas
fiquei a dever à coerência
quando me sentei para jantar
no banquete de quem me meteu
dentro da panela a cozinhar
fugi por um caminho de cabras
dei de caras com um batalhão
de soldados com a barriga cheia
à boleia prá revolução
a linha da frente
normalmente chega sempre atrasada
as forças opressoras
com vassouras
varrem-me logo à entrada
fiz-me de lixo
mas nem assim entrei
restos de migalhas jantei
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3. |
Meio Trono e um Rei
02:26
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Meio trono e um rei
Meio fora-da-lei
Meio justo
Meio fraco
Meio erro é falhar
Meio ovo que já canta de galo
Meio estrelado
Meio estrela-do-mar
Meia dose e um prato
Meio pé no sapato
Meio dedo na meia
Meia sola no chão
Meia pegada no tecto da cozinha
Meia adivinha com meia solução
Então, então
Conta os dedos da mão
Meio lobisomem faz um lobo
Meia lua cheia não o faz uivar
Meio filho de peixe não aprende a nadar
Meia onda bate em Meia Praia
Meio morto que não vai ressuscitar
E por meio dos meios
Meia meada a fiar
Meio rabo de fora
Meio atraso é demora
Meio-dia
Meia hora
Meia-calça é calção
Meio despida a sereia descalça
Meias e botas por meio tostão
Meia fonte de esperança
No meio da balança
Meio choro
Meio riso
Meia fé é descrer
Meia verdade é medalha sem pódio
E meio ódio nem começa a correr
Então, então
Conta os dedos da mão
Meio lobisomem faz um lobo
Meia lua cheia não o faz uivar
Meio filho de peixe não aprende a nadar
Meia onda bate em meia praia
Meio morto que não vai ressuscitar
E por meio dos meios
Meia meada a fiar
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4. |
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ergue-te ó sol da alvorada
coroado astro-rei
da neblina cerrada
cai a chuva que eu chorei
da evaporação
das lágrimas no chão
nasceu um rio junto ao mar
voam os pardais de telhado
que a terra cultivou
no sótão desventrado
que a memória ocupou
com rochedos de pó
e as cinzas dos avós
que um dia vão poder dançar
e depois vem o rio
corre em fio para o mar
crescem os frutos de outra árvore
colhidos de manhã
no peito das palavras
que saltam do sutiã
na marcha nupcial
chorei um funeral
reguei as flores do altar
tirei do centro a gravidade
vontade por cumprir
abrigo da saudade
de um fado que quer mentir
cordão umbilical
num útero de sal
que prende o feto até chorar
e depois vem o rio
corre em fio para o mar
fiz amizade com a saudade
esculpida em pó de arroz
da vitrine da noite
vi um sol que não se pôs
a pomba amanheceu
na estátua que se ergueu
de um rosto anónimo a cantar
e depois vem o rio
corre em fio para o mar
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5. |
70 Anos dos Anos 70
04:21
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Ai pensa bem se queres ir à luta
Que não acaba, não, nunca tem um fim
Pensa bem primeiro
Fazer buracos no meio das toupeiras
Esconder a alma e nunca mais a ver
É tiro certeiro
A vida passa ao lado
Fica recortada em partes
Ai sabes bem que a força é um martelo
Que bate chapas na testa de quem tem
Uma bala ao meio
Ai ficam sonhos que te fazem a cova
Coças a perna mas não a sentes lá
Só o formigueiro
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6. |
Sangue Frio
01:47
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Não há só coisas que são a mesma coisa
daquelas coisas que te fazem ouvir
há sempre algo a descobrir
só tens de resistir ao velho fado
que diz que já está tudo inventado
Não há só ditos de coisas em ditado
nem os dizeres se dizem por dizer
há sempre algo a perceber
só tens de te erguer por entre os escombros
que é encolher o ego e não os ombros
a ditadura já usa dentadura
e a liberdade ainda não nasceu
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7. |
Evolução
02:32
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microscópios de última geração
não se focam na imaginação
câmara lenta não aguenta a rapidez
tecnologia de ponta de um corno
descobre o fogo no bico do forno
a matemática da invalidez
fabrica armas mas só conta até três
ó mãe ciência sem essência, cura o teu mal
descobre o vírus da futilidade
esquece a procura da eternidade
evolução
é ter a fé no lado oposto a qualquer religião
não fazer tripas do bater do coração
peixe fresco da sanita do mar
embalado depois de estragar
investe o imposto do mau gosto em legislação
com desconto para toda gente
nasce a fruta podre na semente
da evolução
que é ter a fé no lado oposto a qualquer religião
não fazer tripas do bater do coração
evolução
não fazer tripas do bater do coração
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8. |
Vou Fugir da Cidade
02:38
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estratosferas de igualdade
ignoram que a realidade é louca
que o ventrículo rural da cidade
é imitação bacoca
dos excessos da modernidade
da ausência de ar e humildade
não se vive o que era dantes
em tubos de escape fumegantes
eu vou fugir da cidade
citações de ídolos mortos
para gáudio de infiéis seguidores
monumentos com os pilares tortos
pilhas de sapatos sem atacadores
os escritores morreram de amores
pela capa da gazeta dos desportos
e a humidade nas estantes
livra os livros dos amantes
eu vou fugir da cidade
individualidades de papel
que esvoaçam como almas fotográficas
fazem do coração um bordel
com ilustres personagens pornográficas
e há veneno nos poros da pele
limitado às formas geográficas
confortáveis no seu nicho
a remexer no lixo
eu vou fugir da cidade
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9. |
Oceano de Gente Bruta
03:41
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Como uma fera sempre à espera de outra
O macho alfa só tem paz na luta
Se for a doer
Logo em criança aprende a nunca se render
Num oceano de gente bruta
Nunca se vira a cara à luta
Um homem não tem dor
Só faz doer
Um macho come a sua cria
Usa a coroa da família
Defende a mulher
Prende os seus filhos na masmorra do saber
Escondido no caparro
Faz-se homem num cigarro
Não deixa nada por fazer, não espera
Não fica em paz podendo estar em guerra
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10. |
Medalha de Platão
02:43
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Onde vais a correr
Qual abutre num campo de concentração
Se tens mais que fazer
Tenta passar por cima ou vai de avião
Onde vais a correr
Como lebre que foge do caçador
Se tens mais que fazer
Põe a tua cabeça a queimar no motor
Respirar, nem pensar
Que parar é morrer
A vida é um ponto de partida
Vais a meio da corrida
E a meta sempre a fugir
O que estás a fazer
Com a mão na buzina e a outra a acenar
Porque não vais beber
Bombas de gasolina até rebentar
Onde vais a correr
A passo de antílope a fugir do leão
Se tens mais que fazer
Vai de comboio no lugar do carvão
A soprar no vapor
Da fornalha a aquecer
A curtir, sempre a abrir
O meu filme de acção
É passar por idosos
Em contra-mão
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11. |
Música
06:01
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ouve a música tocar outra vez
mata a fome em excesso
e vira do avesso o preconceito da solidão
dá-lhe a mão
e ouve a música tocar outra vez
sem querer fazer história ou entrar na memória
um julgamento não é expressão
dá-lhe a mão
são dois minutos e um quarto
ninguém fica farto
e a guitarra entra em trabalho de parto
e nada volta a ser o que foi
ouve a música tocar outra vez
quando acabam os dias ficam melodias
e alguém ressona no refrão
dá-lhe a mão
e ouve a música tocar outra vez
sem palavras de ordem
ou outras que mordem
sujeita a quem aperta o botão
dá-lhe a mão
são dois minutos e um quarto
ninguém fica farto
e a guitarra entra em trabalho de parto
e nada volta a ser o que foi
e ainda bem
e ainda bem
vigente moda que passou
pela frincha da verdade
triste tritão que me gorou
a tarimba da ansiedade
inspira o duro amanhecer
a canção madrugadora
espera por mim
não saltes o fim
da canção que ainda agora
escrevi para ti
se esta canção não te agradar
um minuto de silêncio
tenho latim para gastar
e a latir me despeço
ouve a música tocar tocar outra vez
sem querer fazer história ou entrar na memória
ouve a música tocar tocar outra vez
sem palavras de ordem ou outras que mordem
ouve a música tocar tocar outra vez
quando acabam os dias, ficam melodias
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12. |
Sangue Quente
02:39
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não há abraço que envolva o cansaço
que é ter na alma palavras por dizer
há sempre algo por escrever
só tens que responder pelo que fazes
que é ir à guerra e fazer as pazes
não há cantigas no reino das barrigas
nem as vivências se deixam por viver
o sangue canta com paixão
bombeia um coração amargurado
que marca o tempo no compasso errado
toda a verdade está presa por um fio
porque a mentira ainda não morreu
num sopro quente, o sangue fez-se rio
num leito frio, a lua fez-se breu
cantou-se a morte num longo assobio
e a liberdade ainda não nasceu
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Daniel Catarino Porto, Portugal
Daniel Catarino é um cantautor alentejano residente no Porto. Em canções que fundem a música de raiz e o rock, aborda os paradoxos da humanidade entre a frieza analítica e o calor poético.
Ao vivo, apresenta-se em trio.
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